segunda-feira, 31 de maio de 2010

O último dia de Borges


Borges já tem oitenta e seis anos e não enxerga há tempos. Seus olhos agora são os cheiros e os sons que roçam sua pele, produzindo sensações e evocando lembranças guardadas nos escaninhos da memória. Todos os dias vai até a janela da sala e sente a vida que acontece na rua. O vento é o mensageiro que reproduz o movimento lá de fora nos pelos de seu corpo. Hoje, o vento não trouxe a vida até o velho poeta. A morte chegou antes oferecendo mais que cheiros e sons. Ela o levou com a promessa de dar a ele o horizonte, não apenas uma janela.

domingo, 30 de maio de 2010

Jade


Eu o conheci numa viagem que fiz a Salvador. Foi num desses feriados que de tão longo parecem férias. Era a minha segunda vez na Bahia. A primeira foi há muito tempo atrás. Nem quero lembrar quando foi. Estou em processo de reabilitação da minha compulsão de viver do passado.

Pois bem, andava eu distraída nas ruas de paralelepípedos encharcados de urina, suor, cerveja e dendê. Eu me perguntava onde estaria o tal cheiro de cravo e canela. Isso deve ser coisa que só poetas e escritores chapados sentem. Meus olhos contemplavam a arquitetura local quando surgiu à minha frente aquilo que, sem dúvida, deveria ser a maior atração turística do local: um homem negro, cabeça raspada, alto, braços fortes, um impávido colosso. Finalmente, encontrei um jeito de usar isso. E o sorriso? Salve simpatia! E ele ali sorrindo, provavelmente reconhecendo aquela expressão que estava estampada no meu rosto. Já devia estar acostumado com isso. Tive vontade de sair correndo, mas sustentei o olhar e sorri também. Pensa rápido, pensa rápido. Fala com ele. Encontra uma desculpa qualquer para justificar o approach.

- Boa tarde! - Falei sem saber o que diria depois.

- Boa! – Boa? Isso era uma resposta ou um adjetivo pra mim? Não viaja. Fala logo.

- Olha, eu estou doida para dar pra você. Você poderia acolher o que estou sentindo e me levar para algum lugar qualquer onde a gente possa transar pelo resto da vida? – isso era o que eu queria ter dito. Mas, mantive a pose de moça-classe-média-do-rio-janeiro. No lugar disso, grunhi umas palavras: - Onde posso comer por aqui? - Comer?! Agora ele já sabe o que eu estou mesmo querendo com ele.

- Depende do que você quer comer. - O desgraçado sabia.

- Bem, quero experimentar algo típico daqui. – Agora abri a porteira mesmo. Vou em frente. – Você me acompanharia? – Disse isso e me senti ridícula e atirada.

- Olhe, eu já almocei. Mas, se me disser onde está hospedada, posso te levar para jantar. O que acha? – Ele disse isso mesmo ou estou alucinando?

- Como?! – Acho que eu falei isso com um ar de tonta.

- Jantar. Quer jantar comigo? - O tal sorriso escancarado estava ali para provar que era verdade.

Não pensei duas vezes e já fui passando meu nome, endereço, o celular e tudo que podia garantir que ele me acharia. Nós nos despedimos e eu saí flanando pelas ruas da cidade.

À noite, eu me preparava para o que parecia ser a noite mais excitante da minha vida quando o telefone do quarto tocou.

- Senhora, o senhor Jade a aguarda na recepção. – Jade?! Que diabo de nome é esse para um homem?

- Já estou descendo. – Respondi isso ainda surpresa. Afinal, Jade não é feminino? Que pais são esses que escolhem um nome assim para o filho?

Desci e lá estava ele vestido de linho branco. O contraste do branco com sua pele era divino e seu sorriso mostrava os dentes incríveis. Aquele era, sem sombra de dúvida, um conjunto harmonioso.

- Olá! – Disse isso tentando parecer descontraída. – Ele veio e me beijou delicadamente a bochecha.

- Vou te levar para o lugar mais quente aqui de Salvador.

E existe lugar mais quente do que esse aqui e agora? Pensei e sorri para ele. E quando me dei conta, já estava lá livre e louca, dançando num barracão cheio de gente alegre, com aquele homem lindo. Dançando, suando, beijando e logo implorando para ele me levar pra outro lugar. Acabamos na casa dele. Só lembro que era azul e que um homem nos cumprimentou na calçada. Ali na sua cama ele me ensinou como se faz para ser feliz com um homem daquele. Ele era grande e doce. Cheirava a cravo e canela. Meu Deus! Estou chapada também! No final de tudo, beijou-me de um jeito tão delicado que naquele momento eu aceitaria bem a morte e descansaria em paz. Olhou pra mim e sorriu. Ele tinha os olhos verdes. Lindos olhos cor de jade. Retribui o sorriso e sussurrei feliz porque tudo ali era perfeito.

- Jade... Jade. Que nome lindo você tem.

sábado, 29 de maio de 2010

Caio Fernando Abreu

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.