quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Obrigada pelo amor de hoje



Ele estava em meu silêncio.
Meu cabelo era negro. Eu me vestia de deus e de tantas outras sobras.
Palavras soltas e cores misturadas.
Os dias são bons e gostam de mim
A vida para aplacar a ansiedade.
A competência boa e inútil de um pedaço de pele
e a segurança de não ter quem quisesse ouvir.
Só meu companheiro amigo desconhecido.
Peço prazer legítimo e não me deixar naufragar.
Vai, abandona tudo e chega até aqui.
É preciso ter mais de mil corações
E a chuva muito inclinada a desabar num domingo.
Já adormeci?
A noite é o outro.
Essa não era mais a nossa manhã
Já não somos apenas finitos.
Não posso mais deitar em tua trama de braços.
Ficar lá até o dia dos mortos.
Medo do tempo.
Te procuro pelos vãos. Estarás por lá?
A saudade que doença é.
A lembrança de alguém querido que não me acredita inocente, mas que tem cuidado.
Aprendi prestando atenção na paz perdida não esperar vir a vida.
Que me venha esse rancor, tempo de espadas.
Essa mágoa com toda delicadeza.
Só posso dar o abandono.
Nada é imenso.
Que o mar não me peça definições.
 

sexta-feira, 1 de março de 2013


O Rio e eu, um amor correspondido.

Hoje li várias declarações de amor ao Rio. Aniversário é assim, né? É quando a gente lembra de dizer ao outro aquilo que não diz com frequência, como se o sentimento não estivesse lá todos os dias. Eu sou uma carioca de coração. Vivo aqui há mais tempo do que na terra onde nasci. Amor com amor se paga. A cidade me retribui: amei e fui amada aqui. Cariocas da gema, estrangeiro querendo ser carioca. Amores registrados com fotografias cuja cidade-moldura rouba a cena. O Rio não é só o fundo, é figura. Dá para contar as histórias com o mapa da cidade como referência: ele eu conheci na praia, aquele na Urca, tem o outro que me apresentaram lá no Baixo, ou será que foi naquele show? E você, my love, que me achou no Circo Voador sem saber que ia viver uma história de amor. Não te disseram, sweetie, que São Sebastião é uma versão sadomasoquista do Cupido? Você deixou a alma aqui e agora é um zumbi em Nova Iorque. Eu bem que te avisei. O Rio não perdoa o abandono. A cidade captura parte de nossa alma. Ao deixá-la, nos sentimos como filhos ingratos. Sei que posso viver em qualquer outro lugar do mundo e ser feliz, mas foi no mar daqui que vim parar por amor. O amor que me mantém presa à ti, Rio do meu coração. Em respeito ao teu dia, não falarei daquilo que não gosto. Serei grata e celebrarei apenas o amor, o nosso amor e amores.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Tipos

No trabalho, construía pontes. No amor, muros.

domingo, 23 de outubro de 2011

"Aprendi o silêncio com os faladores, a tolerância com os intolerantes, a bondade com os maldosos e, por estranho que pareça, sou grato a esses professores. (Khalil Gibran).
Eu mudo o tempo do verbo: venho aprendendo. Não é mais tão difícil aceitar cada pessoa em minha vida como um professor. Difícil é reconhecer e aceitar como um presente certas coisas que acontecem na jornada.
Tenho que aprender fora de mim algo de mim. Colocar no meu coração tudo que me foi ensinado.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011



Hoje eu desejei ser a libélula, tocar levemente a vida e anunciar sua renovação. Ser aquela que expressa a essência do tempo da mudança, das mensagens de iluminação e sabedoria. Mas, sou o corvo em busca de resposta, de negras asas da cor do Vazio, que encontra conforto e coragem na escuridão.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

Ferreira Gullar, de Na Vertigem do Dia (1975-1980)
 

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A bicicleta azul e o sonho



Nunca gostei do Natal. Nos dias que antecediam a sua chegada eu mergulhava numa noite negra e não compartilhava do tal “espírito natalino” que envolvia a todos. Era um período em que meu lado mais sombrio assumia o comando, deixando aflorar toda minha revolta pela vida que levávamos. Nessa época, eu via meus amigos ganharem os presentes que haviam pedido ao Papai Noel. Ganhavam porque haviam merecido, diziam.  Em nossa casa não havia merecimento que garantisse a visita do “Bom Velhinho”. Meu pai estava desempregado há muito tempo e o que minha mãe ganhava só garantia o essencial para a sobrevivência da família de cinco filhos. Eu culpava meu pai por seu ócio e pelo seu vício e por todas as mazelas que resultaram de suas péssimas escolhas. Não sei o que acontecia comigo naqueles dias, mas eu ia na contramão do mundo. Enquanto todos deixavam aflorar seus melhores sentimentos, sendo generosos, distribuindo afeto e tolerância, eu me transformava num ser sombrio. Juntava a minha dor de menina que sofria com as constantes agressões físicas do pai às dores de todas as outras meninas do mundo. Eu me tornava demasiado pesada até mesmo para mim.  Detestava as canções de natal e delas fazia versões que se assemelhavam a hinos satânicos.  Hoje, sei que isso era uma maneira criativa de lidar com a dor, mas naquela época, eu acreditava que estava enlouquecendo.
 Aconteceu de aquele ser um Natal diferente. Naquele ano ganhamos uma bicicleta. Devido aos parcos recursos da família a bicicleta era um presente dividido com meu irmão. Acordamos naquela manhã e encontramos a bicicleta na sala. Ela era azul. A bicicleta mais bonita que eu já vi na vida. Azul perolado, alguém disse. Para mim era azul estrelado. Aquelas pequenas partículas prateadas que se misturavam à tinta azul pareciam com o céu no início da noite. O azul profundo salpicado de estrelas. Era uma bicicleta pintada de Via Láctea, eu disse. Era linda! Meu irmão tinha estampado no rosto um sorriso como eu nunca vira. Não que ele fosse um menino triste. Apesar de ter uma saúde delicada, ele era o menino mais alegre que eu conhecera. Ao vê-lo assim tão feliz senti que não poderia dividir com ele o presente. Era como subtrair sua felicidade tirando dele o privilégio de possuir algo na vida que pudesse dizer que era apenas seu. Em nossa casa tudo era dividido: as roupas, os livros, os risos, as dores. Nada era exclusivo.  Porém, esse Natal não foi diferente apenas porque ganhamos a bicicleta. O que tornou aquele dia realmente especial foi o que aconteceu mais tarde. Depois do almoço, como em todos os anos, as crianças da vizinhança foram para a rua brincar com seus novos presentes. Pela primeira em vez em anos, nós também tínhamos brinquedos novos para mostrar. Meu irmão estava lá, como um cavaleiro, montado no seu corcel de aço azul, trotando pela rua.  Eu o observava da calçada.  Nossa mãe veio para perto de mim e, de repente, começou a me contar uma história. Disse que sempre quis aprender a andar de bicicleta, mas que seu pai nunca deixara. Meu avô era um homem conservador, muito rígido em seus princípios. Suas maneiras à mesa e o modo como se vestia e falava refletiam sua personalidade. Ninguém ousaria desafiá-lo. Para ele, bicicleta era coisa para meninos. Moças estudavam música e aprendiam a bordar e a costurar. Minha mãe não ousou contrariá-lo. Aprendeu a tocar piano e harpa, mas nunca conseguiu bordar ou costurar alguma coisa que valesse a pena. Assim, durante anos, carregou a frustração de não saber andar de bicicleta.
                Eu ouvi minha mãe contar aquela história sem interrompê-la. Eu sabia muito pouca coisa sobre quem ela era antes de ser minha mãe. Sabia que tivera uma vida boa, que foi normalista, que quando casou com meu pai levou para casa vários baús cheios de vestidos e sapatos e que era a moça mais bonita do lugar. Ela vinha de uma família estável, de um mundo onde imperava a normalidade. Seus pais eram pessoas confiáveis e respeitados por todos. Mas, desde muito cedo eu percebi que toda essa estabilidade não fora suficiente para prepará-la para os anos de dor e desespero que ela viveria ao lado de nosso pai. Ela sempre foi para mim uma mulher frágil, que se comportava muitas vezes como nossa irmã, incapaz de enfrentar o marido para defender um filho, tamanho era o medo que tinha dele. Nos momentos mais difíceis parecia tão desamparada quanto nós.
Enquanto ouvia seu relato um pensamento me ocorreu. Chamei meu irmão e contei-lhe a história que acabara de ouvir. Ele, com a cumplicidade que sempre nos ligara, entendeu minha intenção. Falamos para nossa mãe que iríamos ensiná-la a andar de bicicleta. Ela riu e duvidou que conseguisse aprender, que andar numa bicicleta era fácil quando ainda se é uma menina, mas agora era algo impossível. Insistimos para que ela tentasse. Ela relutou por um tempo, mas não conseguiu resistir ao apelo de seu sonho e aos nossos pedidos insistentes, quase uma súplica. Muito desajeitada, sentou no selim da bicicleta e segurou no guidão. Meu irmão e eu seguíamos um de cada lado, assegurando o equilíbrio da bicicleta e protegendo-a. Ela parecia uma menina assustada e pedia para que não soltássemos. Nós sorriamos e dizíamos que ela estava indo muito bem. Era muito estranha aquela inversão de papéis. Fazíamos com ela o que ela não conseguia fazer por nós. Não sei quanto tempo ficamos assim dando voltas pela rua, diante do olhar divertido dos vizinhos. Nós também nos divertíamos com aquilo tudo, mas sabíamos o quanto era sério o que estávamos testemunhando naquele dia. Num determinado momento, meu irmão e eu concordamos que ela já podia se arriscar a pedalar sozinha. Nossa mãe ria de um jeito engraçado, misturando alegria e medo, mas concordou em tentar. Contamos até três e soltamos a bicicleta. Foi um momento incrível: ela pedalava desajeitada, mas não caiu. Manteve a bicicleta e o orgulho de pé. As pessoas entusiasmadas gritavam e aplaudiam. Ela realizava seu sonho. Um sonho simples que havia se transformado em algo mágico para meu irmão e eu. Andar de bicicleta, essa coisa tão banal, tão prosaica para alguns, transformou-se em poesia e felicidade num inesquecível dia de Natal.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Envelhecer-se


Ouvi alguém dizer que havia completado cinquenta anos e que estava feliz por envelhecer. Perguntei o que tornava esse um momento feliz. A resposta foi simples: viveu mais que muitos amigos dele. Insisti mais um pouco para saber se tinha mais alguma razão que justificasse tamanha felicidade. Ele diz que está com saúde, tem trabalho e viveu mais que alguns amigos. Ficou claro para mim que o importante é ele estar bem. Também acho que isso é importante. Mas, e o resto do mundo? E as suas relações? Fui tomada por um desconfortável vazio. Definitivamente, esses não seriam meus critérios para definir um feliz envelhecer. Claro que é bom ter saúde, trabalho e uma vida longa. Mas, para que serve tudo isso se eu não tiver cuidado das minhas relações? O cuidar não apenas de si, mas também do outro e do nós. Acredito que a busca pelo tal "envelhecer feliz" deve incluir a busca pela integração das dimensões física, mental, espiritual e tantas outras mais que se considere importante para alcançar uma certa harmonia no viver. Não me imagino velha e feliz só porque tenho saúde, trabalho e sobrevivi mais que alguns. Deve ser bom também envelhecer acompanhada por alguns. Cuidando e sentindo-se cuidado por si e pelo outro. Deve ser bom dormir sem angústia pela culpa, ter a alma plena de gratidão pelo amor dado e recebido, ter alguém que segure sua mão na dor, que ria com você e de você, alguém que te faça bem. De que adianta ter saúde, trabalho e viver muito se você é um colecionador de desafetos, se não consegue ser grato pelo tempo que o outro dedicou a você, se não consegue perdoar, se não vê a beleza que é a vida de uma outra pessoa, esse outro ser, outro mundo, um outro universo? Quero envelhecer assim: tendo relações onde eu possa viver o meu melhor e o outro também. O resto vem como bônus. 
Aho Mitakuye Oyasin! Todas as minhas relações, eu honro vocês que hoje estão aqui comigo neste círculo da vida. (trecho de uma prece Lakota).