quinta-feira, 29 de abril de 2010

Quando o pai do pai do meu pai



Texto de Gilberto Reis

Quando o Pai do Pai do Pai do meu Pai tinha uma tarefa difícil a cumprir, dirigia-se a um certo lugar na floresta, fazia uma fogueira e lançava-se numa oração silenciosa.
Quando mais tarde o Pai do Pai do meu Pai se encontrou perante a mesma tarefa, dirigiu-se ao mesmo lugar da floresta e disse: já não sabemos fazer uma fogueira, mas ainda sabemos rezar.
Mais tarde o Pai do meu Pai viu-se perante a mesma tarefa. Foi ele também à floresta e disse:já não sabemos fazer fogueiras, já não conhecemos os mistérios da oração, mas sabemos em que ponto da floresta é que isso se passou.
Quando a vez do meu Pai chegou, disse:
já não sei fazer a fogueira, nem orar, nem o lugar na floresta,
mas sei contar a história e isso deve bastar.
E bastou.
Quando me vi perante a mesma tarefa já não sabia contar a história.

sábado, 24 de abril de 2010

A gota que falava transbordou no copo que calava.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Já passou, meu bem.


O parque bem aqui ao lado me faz lembrar que preciso escolher alguém sobre quem escreverei algo. Olho pela janela do carro, mas não vejo ninguém. A chuva assustou as pessoas. No rádio, a voz de Paul Weller acompanha o meu olhar. Adoro Paul Weller. Sei que você está ali num daqueles prédios de apartamentos se preparando para sair. Conheço essa tua rotina. Mudo de idéia e decido ir embora, mas é tarde, você já está parado lá. Vejo você, mas você não pode me ver. Adoro películas de proteção. Agora você está aí sozinho, parado na esquina molhada. Conheço essa esquina. Lembra, foi nela que um dia a gente jurou que também era para sempre. O que a insensatez uniu o homem não separe. Aí também você disse para eu ir embora e depois segurou minha mão. Fica. Não falava a sério. E agora você está aí sozinho, molhado na esquina parada.

Então é isso, é sobre nós que vou escrever? You do something to me rolando no rádio. Odeio Paul Weller. Nosso amor começou clandestino. A princípio, nos escondíamos do mundo; depois de nós mesmos. Dois clandestinos naquele teu escritório branco. Odeio paredes brancas. Lá tudo era sem graça, menos você. Ah, você... Você era do tipo que abria a porta do carro. Quando ganhamos o “Green card”, eu fui até a tua casa. Entrei pela porta da frente naquela sala bege. Odeio paredes beges. Lá tudo era sem graça, inclusive você. Abria a porta do carro, mas não a do coração. Pisando no chão de pedra do teu quarto senti frio. Quis ir embora, mas nem sei por que fiquei. Na realidade, nunca soube a razão desse amor. Quando eu estava sozinha, sentia saudade de você. Quando estava com você sentia saudade de mim. Soa patético. E é. Assim como aqueles teus docksides tão anos 80.

Vejo você atravessando a rua. Eu aqui parada. O tempo passando pela gente nesta esquina parada. A vida parada por um momento. Os teus cabelos agora são brancos, eu já não sinto mais saudades e o Tom Waits rolando no rádio me faz lembrar que já passou, meu bem. Adoro Tom Waits.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Dorotéia de um homem só

Dorotéia sempre foi moça de família, dessas pra casar mesmo. Nasceu na classe média e foi bem educada em escolas católicas. Do pai, um militar de carreira, adquiriu a maneira disciplinada com que orientava sua vida e a rigidez com que julgava suas próprias ações. Da mãe, filha de um comerciante rico, herdou uma insatisfação crônica, o que lhe fazia querer sempre estar em outro lugar que não aquele que ocupava no momento. O primeiro homem de Dorotéia foi aquele que se tornaria seu marido. Era praticamente virgem quando casou. E casou cedo, apaixonada pelo amor de sua vida. Abro aqui um parêntese. Deveria existir uma lei que proibisse as pessoas de se casarem antes dos trinta anos. Fecha parêntese. No início, Dorotéia sentia-se amada pelo marido e muito segura no casamento. Era tratada como uma jóia rara e paparicada por ele como nunca havia sido. Vieram então os filhos e também as traições do marido. Dorotéia, no entanto, mantinha-se fiel e apaixonada. Não entendia porque o marido traía. Afinal, era uma mulher fogosa, sabia extrair prazer de seu corpo e dar prazer ao marido. Mas, toda essa intensidade era vivida dentro do casamento, apenas com o marido, descrito por ela como um grande amante. Muitas vezes fingiu não saber que as traições aconteciam e recolhia-se num silêncio ressentido. Era invejada pelas amigas e sempre citada como exemplo de esposa, mãe e profissional bem sucedida. Não era cega para a beleza dos outros homens, mas tudo se resumia a olhares contemplativos e fantasias guardadas em segredo. “Fantasias são boas porque são apenas fantasias”, costumava dizer. Mas, foram tantas as traições do marido, que ela um dia cansou e o mandou embora. Não foi uma decisão fácil. Afinal, era abrir mão da segurança que a dependência amorosa exclusiva proporcionava. Dorotéia viveu um longo luto. Frequentava o consultório do analista uma vez por semana em busca de uma explicação que a ajudasse a compreender o que foi que deu errado no projeto. Não encontrando respostas para suas perguntas, decidiu que para esquecer o antigo amor iria amar novamente. Assim, envolveu-se com um homem mais velho, que ela acreditava ser maduro o suficiente para viver uma relação feliz. Não foi difícil se apaixonar por ele e logo se imaginar casada novamente. Mas, esse novo amor durou pouco. Dorotéia viu a realidade e não gostou. Preferiu ficar sozinha. De novo ela estava sozinha e ferida. Amargou um novo luto. Voltou a freqüentar o consultório do analista, agora duas vezes por semana buscando novas explicações para o que ela havia identificado como um padrão de comportamento. Chorou centenas de lágrimas novas por lembranças velhas, cobrou-se e lamentou o tempo desperdiçado, mexeu tanto nas feridas que um dia cansou e abandonou a análise, decidida a mudar. Cansou de ser boa moça e não ver recompensa nisso. Resolveu que não queria mais relações onde sentisse. Sentir para ela agora era sinônimo de aprisionamento. Daquele dia em diante só iria se envolver com homens que não quisessem sentir também. Queria a liberdade do sexo casual e intenso. E foi dessa maneira que passou a viver. Todo homem na rua agora era uma possibilidade de sexo, alguém para não sentir junto com ela por algumas horas. Nos bares que frequentava com os amigos, seus olhos eram radares atentos, buscando nas mesas um potencial não sentidor com o qual não iria se envolver, que a levaria para a cama e a faria feliz pela eternidade de uma noite, ou até mesmo duas, mas não mais que três. Passou a viver freneticamente seus dias. Virou uma caçadora, ou como se definia, uma pegadora. Houve uma época em que acordava às cinco da manhã para flertar com o gari que recolhia o lixo na sua rua. Ficava ali, debruçada na janela do quarto, acenando maliciosamente para ele, ignorando o cheiro de lixo podre que invadia a rua quando o caminhão passava. Dava gorjetas generosas para o lavador de carro e sorria encantadoramente para todos, sem exceção, pois como dizia para as amigas, não era só o proletariado que a interessava. Também se envolvia com empresários bem sucedidos, artistas e intelectuais, mas estes com certa moderação. Afinal, tinha uma tendência a se apaixonar por cérebros e aí o risco de sentir era maior. Dorotéia exercitava sua autonomia emocional ao máximo. Era enfim uma mulher sozinha e feliz. Desenvolvera uma nova visão do amor e do sexo e dizia que isso era libertador. Às vezes, sentia-se até libertina. Como no dia que olhou para uma amiga com certo entusiasmo e se deu conta de que nunca tinha comido uma mulher. Riu do próprio pensamento e gostou da idéia. Um belo dia acordou em casa e procurou na cama o homem que levara para casa afim de não sentir juntos e terem uma boa noite de sexo. Ele havia partido e, em seu lugar, deixara trezentos e cinqüenta reais sobre a cama. Dorotéia apanhou o dinheiro e levou um tempo para entender o que estava acontecendo. Foi então que compreendeu tudo. Deu uma estrondosa gargalhada, daquelas que são ouvidas por toda a vizinhança e pensou: virei puta!