quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A bicicleta azul e o sonho



Nunca gostei do Natal. Nos dias que antecediam a sua chegada eu mergulhava numa noite negra e não compartilhava do tal “espírito natalino” que envolvia a todos. Era um período em que meu lado mais sombrio assumia o comando, deixando aflorar toda minha revolta pela vida que levávamos. Nessa época, eu via meus amigos ganharem os presentes que haviam pedido ao Papai Noel. Ganhavam porque haviam merecido, diziam.  Em nossa casa não havia merecimento que garantisse a visita do “Bom Velhinho”. Meu pai estava desempregado há muito tempo e o que minha mãe ganhava só garantia o essencial para a sobrevivência da família de cinco filhos. Eu culpava meu pai por seu ócio e pelo seu vício e por todas as mazelas que resultaram de suas péssimas escolhas. Não sei o que acontecia comigo naqueles dias, mas eu ia na contramão do mundo. Enquanto todos deixavam aflorar seus melhores sentimentos, sendo generosos, distribuindo afeto e tolerância, eu me transformava num ser sombrio. Juntava a minha dor de menina que sofria com as constantes agressões físicas do pai às dores de todas as outras meninas do mundo. Eu me tornava demasiado pesada até mesmo para mim.  Detestava as canções de natal e delas fazia versões que se assemelhavam a hinos satânicos.  Hoje, sei que isso era uma maneira criativa de lidar com a dor, mas naquela época, eu acreditava que estava enlouquecendo.
 Aconteceu de aquele ser um Natal diferente. Naquele ano ganhamos uma bicicleta. Devido aos parcos recursos da família a bicicleta era um presente dividido com meu irmão. Acordamos naquela manhã e encontramos a bicicleta na sala. Ela era azul. A bicicleta mais bonita que eu já vi na vida. Azul perolado, alguém disse. Para mim era azul estrelado. Aquelas pequenas partículas prateadas que se misturavam à tinta azul pareciam com o céu no início da noite. O azul profundo salpicado de estrelas. Era uma bicicleta pintada de Via Láctea, eu disse. Era linda! Meu irmão tinha estampado no rosto um sorriso como eu nunca vira. Não que ele fosse um menino triste. Apesar de ter uma saúde delicada, ele era o menino mais alegre que eu conhecera. Ao vê-lo assim tão feliz senti que não poderia dividir com ele o presente. Era como subtrair sua felicidade tirando dele o privilégio de possuir algo na vida que pudesse dizer que era apenas seu. Em nossa casa tudo era dividido: as roupas, os livros, os risos, as dores. Nada era exclusivo.  Porém, esse Natal não foi diferente apenas porque ganhamos a bicicleta. O que tornou aquele dia realmente especial foi o que aconteceu mais tarde. Depois do almoço, como em todos os anos, as crianças da vizinhança foram para a rua brincar com seus novos presentes. Pela primeira em vez em anos, nós também tínhamos brinquedos novos para mostrar. Meu irmão estava lá, como um cavaleiro, montado no seu corcel de aço azul, trotando pela rua.  Eu o observava da calçada.  Nossa mãe veio para perto de mim e, de repente, começou a me contar uma história. Disse que sempre quis aprender a andar de bicicleta, mas que seu pai nunca deixara. Meu avô era um homem conservador, muito rígido em seus princípios. Suas maneiras à mesa e o modo como se vestia e falava refletiam sua personalidade. Ninguém ousaria desafiá-lo. Para ele, bicicleta era coisa para meninos. Moças estudavam música e aprendiam a bordar e a costurar. Minha mãe não ousou contrariá-lo. Aprendeu a tocar piano e harpa, mas nunca conseguiu bordar ou costurar alguma coisa que valesse a pena. Assim, durante anos, carregou a frustração de não saber andar de bicicleta.
                Eu ouvi minha mãe contar aquela história sem interrompê-la. Eu sabia muito pouca coisa sobre quem ela era antes de ser minha mãe. Sabia que tivera uma vida boa, que foi normalista, que quando casou com meu pai levou para casa vários baús cheios de vestidos e sapatos e que era a moça mais bonita do lugar. Ela vinha de uma família estável, de um mundo onde imperava a normalidade. Seus pais eram pessoas confiáveis e respeitados por todos. Mas, desde muito cedo eu percebi que toda essa estabilidade não fora suficiente para prepará-la para os anos de dor e desespero que ela viveria ao lado de nosso pai. Ela sempre foi para mim uma mulher frágil, que se comportava muitas vezes como nossa irmã, incapaz de enfrentar o marido para defender um filho, tamanho era o medo que tinha dele. Nos momentos mais difíceis parecia tão desamparada quanto nós.
Enquanto ouvia seu relato um pensamento me ocorreu. Chamei meu irmão e contei-lhe a história que acabara de ouvir. Ele, com a cumplicidade que sempre nos ligara, entendeu minha intenção. Falamos para nossa mãe que iríamos ensiná-la a andar de bicicleta. Ela riu e duvidou que conseguisse aprender, que andar numa bicicleta era fácil quando ainda se é uma menina, mas agora era algo impossível. Insistimos para que ela tentasse. Ela relutou por um tempo, mas não conseguiu resistir ao apelo de seu sonho e aos nossos pedidos insistentes, quase uma súplica. Muito desajeitada, sentou no selim da bicicleta e segurou no guidão. Meu irmão e eu seguíamos um de cada lado, assegurando o equilíbrio da bicicleta e protegendo-a. Ela parecia uma menina assustada e pedia para que não soltássemos. Nós sorriamos e dizíamos que ela estava indo muito bem. Era muito estranha aquela inversão de papéis. Fazíamos com ela o que ela não conseguia fazer por nós. Não sei quanto tempo ficamos assim dando voltas pela rua, diante do olhar divertido dos vizinhos. Nós também nos divertíamos com aquilo tudo, mas sabíamos o quanto era sério o que estávamos testemunhando naquele dia. Num determinado momento, meu irmão e eu concordamos que ela já podia se arriscar a pedalar sozinha. Nossa mãe ria de um jeito engraçado, misturando alegria e medo, mas concordou em tentar. Contamos até três e soltamos a bicicleta. Foi um momento incrível: ela pedalava desajeitada, mas não caiu. Manteve a bicicleta e o orgulho de pé. As pessoas entusiasmadas gritavam e aplaudiam. Ela realizava seu sonho. Um sonho simples que havia se transformado em algo mágico para meu irmão e eu. Andar de bicicleta, essa coisa tão banal, tão prosaica para alguns, transformou-se em poesia e felicidade num inesquecível dia de Natal.

3 comentários:

  1. Belo texto, Elane. O tipo de coisa que desarma qualquer coração duro sem avisar. Parabéns por conseguir expressar essas lembranças que, em algum momento foram doloridas, de forma tão pura. Imagino o quanto doeu o 'parto' deste texto. Mas, sei o quanto o expurgo pode ser benéfico. E sei que te fez bem relatar. Sorte!

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  2. Parabéns, quebranta q/q ser dotado de inteligência.

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